Odò Ọ̀bà

Rio Ọ̀bà — o Rio que se ouve.

Ṣàngóṣọlá
5 min readNov 11, 2019

Em uma das minhas casas, um mais Velho sempre me diz:

"Enxergue com os ouvidos, eles vêem bem melhor que os olhos."

O exercício de ver com os ouvidos é de extrema importância porque muitas das vezes os olhos enganam. Se os espelhos de bronze e de prata não estão bem alinhados e limpos, a beleza de uma bromélia, por um exemplo, consegue facilmente disfarçar sua tática enquanto hospedeira.

Nós piscamos aproximadamente vinte e quatro vezes por minuto e cada piscada dura apenas alguns décimos de segundo, tanto o tempo quanto a frequência das piscadas variam de acordo com o estado geral e com o humor de cada pessoa. E o que acontece nesses breves instantes em que nossas pálpebras se fecham? É tão rápido e automático que nem percebemos que nossos olhos fecharam e abriram.

Já nossos ouvidos nunca se fecham, nem enquanto dormimos, eles estão sempre captando sons, ruídos, a vibração do nosso corpo, nossa respiração… Os ouvidos também acompanham nossa vontade, por um exemplo: podemos estar num lugar barulhento, mas se decidimos ouvir alguém ou algo, nós seremos capazes, o ouvido vai isolando os sons, abaixando o volume de alguns e aumentando o de outros, assim sem perceber deixamos de ouvir os barulhos que não desejamos para escutar o que determinamos.

Tudo isso pode ser aplicado em relação a ouvir/ver o outro, mas precisa ser utilizado principalmente para as autoanálises, autoconhecimento e autocrítica, será que estamos nos enxergando bem com os ouvidos? Será que ouvimos as coisas que dizemos?

A voz é um presente do criador e com ela nos comunicamos com as divindades, por isso as palavras para os povos afrikanos carregam um grande poder, são em si um valor, energia, são realizadoras e devem ser utilizadas com sabedoria e inteligência, uma palavra mal empregada pode arruinar uma pessoa ou situação.

No Panteão Yorùbá, Ọ̀bà é comumente retratada com uma mão cobrindo a orelha. Dizem que Ọ̀bà não tem uma de suas orelhas e por isso esconde as cicatrizes, muitas dessas histórias culpam Ọ̀ṣun, alguns dizem que ela enganou Ọ̀bà para que cortasse a própria orelha, outros dizem que foi Ọ̀ṣun que cortou a orelha de Ọ̀bà durante uma batalha…Independente das várias versões, o gesto de Ọ̀bà é o mais importante para esse texto.

Ao isolarmos um de nossos ouvidos podemos nos escutar melhor sem deixar de ouvir o todo. Podemos dar atenção as nossas próprias palavras e o que se esconde nelas. Conseguimos ouvir melhor nossos questionamentos, refletir sobre o que nossos olhos não enxergaram ou viram errado.

Ọ̀bà — técnica mista — Rafaela Nascimento, 2019

Ọ̀bà é uma grande guerreira, hábil com variadas armas, temida por vários, muitas vezes é descrita como uma mulher mais velha, sem beleza, mas que curiosamente desperta o desejo de guerreiros como Ṣàngó e Ògún. Qual o segredo do encanto de Ọ̀bà? Seria a capacidade de ouvir a si mesma? É esse autoconhecimento e conhecimento sobre o outro que fazem com que ela seja tão interessante? Teria perdido a orelha como um lembrete para ouvir a si mesma?

Ọ̀bà nos ensina que os ouvidos são extremamente sensíveis e por isso temos que ter cuidado com o que ouvimos ou deixamos de ouvir, principalmente com o que dizemos para os outros e para nós mesmos. Como diz a máxima~ existem três coisas na vida que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida.

Quando somos crianças, é comum frente a irritação com algo dito ~ tapar os ouvidos enquanto se cantarola: lalalala. Em momentos mais extremos usamos o “ficar de mal” que é basicamente quando um não fala com o outro, ou seja, ambos os lados combinam de se privarem da voz um do outro.

Na profunda indignação utilizamos do desprezo silencioso. O silêncio também evita a exposição dos sentimentos, evita que algo não desejado seja visto, afinal tem quem consiga sustentar sua postura em silêncio, mas que ao falar e se ouvir, cai em prantos.

Como dito antes, as palavras tem força e os ouvidos captam esse poder, por isso é necessário pensar no que se diz sobre si mesmo e também para não acreditarmos em qualquer coisa que dizem sobre nós. Muito do que ouvimos acabamos esquecendo, mas são mensagens que ficam no nosso subconsciente e que nos modificam, se entranham no nosso Orí. Ouvir por muito tempo que não se é capaz ~pode fazer com que se acredite na incapacidade. Ouvir muito tempo sobre sua aparência ~ pode transformar sua autoestima para o bem ou mal. Ouvir por muito tempo que não há como resolver problemas ~pode nos tornar incapazes de pensar sobre soluções.

As palavras ouvidas são transformadoras e a transformação pode ser positiva ou negativa. Tem coisas que não dizemos para evitar que se tornem realidade. É quando falamos e ouvimos que se torna impossível negar. Depois de dito é real, a flecha lançada não vai voltar, o estado de negação termina, os traumas são revividos e revelados. Por isso há quem converse com alguém mais velho ou simplesmente que tenha sua confiança para falar e ouvir aquilo que necessita para se curar ou ver sob uma nova perspectiva, cada um busca uma forma de extravasar os sons que moram dentro de si.

Quando falamos de alimentação isso inclui aquilo que ouvimos, falamos, cantamos, gritamos, sussurramos, meditamos e silenciamos. O que você esconde? O que se recusa a ouvir de você mesmo? Quantas coisas ruins você é capaz de ouvir sem tentar evitar? O que já entrou pelos nossos ouvidos e nos machucou? Como saramos essas chagas? Será que conseguimos apagar uma palavra que nos machucou? Quais palavras boas faltam na sua dieta?

Que cada um de nós seja capaz de cuidadosamente tratar os ouvidos, os olhos, a voz e se reprogramar.

1* Piscada — Wagner Molina — Revista Super Interessante
https://super.abril.com.br/saude/piscada/

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