A espada, o guerreiro e a água.

Quente, terra e macho.

Ṣàngóṣọlá
4 min readJul 2, 2020

Quando eu era criança ~ nós tínhamos muitos vasos de plantas na laje da minha casa. Tinha boldo, pinhão, espada de são jorge, comigo-ninguém-pode, arruda, tinha umas plantas que eu não sei o nome e tinha uma que dava umas florezinhas amarelas. Eu adorava mexer nas plantas, as vezes por curiosidade eu arrancava alguma folha ou galho, minha mãe sentia o exato momento em que eu ia fazer bobagem e aparecia para me repreender:

"Você gostaria que alguém arrancasse um pedaço seu?"

Então eu respondia que não queria ou simplesmente fazia que não com a cabeça.

Chamava muita a minha atenção a forma como a minha mãe tratava aquele pequeno jardim. Todos os dias ela regava e conversava com as plantas. A minha mãe falava com as plantas como se elas fossem bebezinhos, sabe quando a pessoa fala meio "iti neném"… as vezes fazia carinho nas folhas/galhos, perguntava porque elas estavam assim ou assado... Ela me explicou que a minha avó tinha ensinado que era importante falar com as plantas e que elas tinham sentimento, gostavam de carinho, sentiam dor quando a gente arrancava pedaços sem necessidade e várias outras coisas. Minha mãe também me explicava que não se podia colocar água demais e nem água de menos, o excesso ou a falta de água mataria a planta. De vez em quando eu ajudava a regar e parava pra ficar trocando uma ideia com as plantas, nem sempre eu falava, as vezes era só na minha cabeça. As plantas não respondiam com palavras, mas eu me sentia bem depois de conversar com elas. A verdade é que as plantas aqui de casa estavam sempre bem fortes e cresciam bastante.

Entendo que essa relação com as plantas era uma prática totalmente voltada para as espiritualidades africanas e dos povos originários aqui dessa terra, é um conhecimento que foi passado de geração em geração e eu não precisava entender conceitos sobre espiritualidade para sentir, observar, entender e aplicar aquele conhecimento.

Eu simplesmente sentia que podia fazer porque eu me sentia parte daquilo.

técnica mista, 2019 ~ 2020 — Ọmọ Ọba Ṣàngóṣọlá Bọ́lánlé

Tenho pensado muito na palavra "sentir". Eu sempre senti quem eu era, eu continuo sentindo, acredito que sinto até demais. Aquilo que sentimos e como sentimos é tão único quanto as nossas impressões digitais.

As pessoas vão achar que nos conhecem e nós vamos achar que conhecemos as pessoas, mas chego a conclusão de que a gente não conhece ninguém. A gente no máximo sente uma coisa ou outra, mesmo assim com uma grande possibilidade de sentir errado ~seja de maneira positiva ou negativa.

Os julgamentos errados que a gente faz dos outros e que outros fazem da gente acontecem o tempo inteiro. Quando a gente erra sobre o outro podemos pedir desculpas e/ou aguardar que o sentimento se transforme. Quando erram sobre a gente é preciso que estejamos prontos, pois quem erra pode tentar impor a todo custo que a gente é o que ele acha que nós somos, seja para bem ou para mal. As vezes quem nos sente errado identificará qualidades e defeitos que sequer temos ou desejamos ter. Por isso é importante sentir quem se é, dessa forma não importa se é uma pessoa ou um exército que te percebe errado, a certeza de quem somos nos fará vencer a batalha sem precisar guerrear num campo desconhecido.

“tá, beleza, mas ‘sentir quem se é’ impede a gente de ficar bravo? “

Não, não impede. A gente fica bravo, mas não permite que isso se torne parte do que a gente é.

Lembro que uma das plantas da minha laje era a Espada de São Jorge, linda, têm folhas verde-escuro, compridas, pontudas como uma espada e com riscos/linhas/ondas verdes num tom mais escuro que a folha. É uma planta de proteção. Aprendi que é principalmente uma planta que expurga as nossas negatividades internas, pois como diz um òwe yorùbá:

"Se não tivermos um inimigo interno, os que estão do lado de fora nada poderão nos fazer."

Os inimigos internos são muitos: insegurança, ansiedade, medo, egoísmo, raiva, tristeza… são tantos que nem teria tempo para escrever todos aqui. Mas são inimigos que sempre podem ser transformados, o medo pode se tornar coragem, o egoísmo pode se tornar generosidade e assim por diante. Só que as transformações vão precisar acontecer o tempo todo, nada é definitivo, é preciso estar em movimento, se não a gente acaba se permitindo sentir um monte de tralha que não serve pra absolutamente nada.

Fico trocando ideias com minhas plantas e antes de regá-las me olho no reflexo da água, pois todo dia acontece o exercício de equilibrar a quantidade água que coloco naquilo que sinto que deve crescer e de deixar secar aquilo que já não faz sentido dentro de mim.

E os outros? Os outros que lutem suas batalhas sozinhos, afinal os inimigos externos não são os mais importantes.

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